domingo, 27 de junho de 2010

Caixa de Pandora

Subiu em uma cadeira, ficou na ponta dos pés e finalmente conseguiu puxar uma caixa empoeirada de cima do armário. Não sabia exatamente o que procurava, mas o que encontrou foi lembranças. Talvez quisesse, sem perceber, encontrar um si mesmo há muito esquecido. Soprou o pó, que rodopiou pelo quarto enquanto uma fresta de luz iluminava cada partícula rebolante.

Abriu-a.

A caixa, como se houvera sido violada em seus segredos, respondeu mostrando-lhe um velho álbum de fotografias; um objeto pertencente há um outro “quando”. Uma época onde as memórias eram dignas de serem protegidas do onipotente e corrosivo tempo e sua cauda escura, o esquecimento. E o que aquelas molduras enquadravam nada mais eram que resquícios, migalhas de de uma era passada há poucos ontens, mas há muitos nãos de distância.

A cada página virada, o coração hesitava em bater novamente. Aqueles sorrisos imóveis, aqueles abraços para sempre aconchegantes, os olhares de brilho incorruptível, aqueles beijos libertados de seu minúsculo fragmento de tempo. Todo esse caleidoscópio girava antes os olhos e fazia doer o peito, como se houvesse em seu interior um câncer até então adormecido.

Olhou-se no espelho. As rugas de expressão eram a única evidência de que já houvera naquele rosto sorrisos. Eram como o solo revolvido ao arrancar-se uma raiz profunda. Os olhos já não brilhavam, não porque não transparecessem a alma, mas justamente porque a alma era opaca e vazia. Nem uma lágrima sequer ousava insinuar-se ali.

Virou a caixa de cabeça para baixo, esvaziando-a com fúria. E dali saíram todas as suas póstumas alegrias, transmutadas em suas desgraças. Olhou para o fundo da caixa, mas não havia ali esperança alguma. “Talvez ela tenha ido embora ou morrido” – indagou-se. “Mas, se a esperança é a última a morrer” – pensou - “ o que resta de vivo em mim?”

Do chão, seus próprios olhos brilhantes o contemplavam com sorrisos ironicamente imóveis. A última partícula de pó flutuou, rodopiou pela última vez e depositou-se delicadamente sobre sua última vontade de viver.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Vuvuzela reencarnada

 

Já fui muitas coisas em muitas vidas. Coisas boas e coisas ruins, porém não tão terríveis quanto a que estou estou prestes a ser.

Mas comecemos pelo começo.

Meu primeiro fragmento de memória é antigo, muito antigo. Se foi minha primeira existência ou não é difícil dizer, mas é a primeira de que me lembro. Eu era uma trombeta. Isso mesmo! Mas não uma trombeta qualquer, eu pertencia aos guerreiros de Israel. Lembra das muralhas de Jericó? Não? Bom, faz um tempinho mesmo. O fato é que, eu possuía uma força tão descomunal que, soprada junto com minhas irmãs, abalei as estruturas da muralha e ela caiu! E a cidade foi conquistada graças ao meu imponente grito.

Mas nada dura para sempre. Depois de alguns séculos, o Grande Criador (o cara que cuida dessas questões logísticas) me designou para uma outra existência. Dessa vez eu era um clarinete. Mas não um clarinete qualquer, eu pertencia a um músico da Orquestra Sinfônica de Bethoven! Ah, bons tempos! Cantarolava a noite toda, era manuseada com carinho e produzia sons tão belos que arrancavam lágrimas de quem quer que me ouvisse… Pertencia à nobreza dos instrumentos musicais, tinha um corpinho esbelto…

Mas o tempo passou e aquela vida chegou ao fim. Novos tempos vieram e eu retornei ao serviço militar. Era uma trombeta de atalaia. O quê? Não sabe o que é isso? Bom, são aqueles soldados que ficam no alto do morro vigiando o inimigo e, quando vêem algo suspeito, tocam a trombeta! Salvei muitas vidas assim, mas não gostava de ser dedo-duro.

Bem, antes ser dedo-duro do que a minha função posterior a isso. Fui designado como tromba de elefante! Ficava o dia inteiro suja de capim e baba de elefante, fazendo barulhos estranhos e cheirando a bosta. Fora o acasalamento. Já viu um beijo de elefante? Sorte sua. Acho que todo mundo passa por fases ruins na vida. Ou nas vidas.

O tempo foi passando, e eu já havia sido trombeta, clarinete, trombeta de novo, tromba de elefante, cornetinha-de-festa-infantil, alarme de incêndio, flauta doce, canudinho de açaí, Cornetto (o sorvete), trompete de banda de escola e muitas outras coisas…

Recentemente, fui uma vuvuzela. No começo foi divertido. Clima africano, futebol, torcida, festa, algazarra. Mas depois confesso que até eu comecei a me achar irritante. Aquela zueira ensurdecedora por horas não deve ser coisa de gente normal.

Mas eu reclamei de barriga cheia, nem desconfiava da tragédia que me esperava. Como das outras vezes, o Grande Criador veio me incumbir de minha tarefa em minha nova existência. “Minha cara vuvuzela, outrora trombeta, outrora clarinete e trombeta novamente, outrora tromba de elefante, cornetinha-de-festa-infantil, alarme de incêndio e flauta doce; outrora canudinho de açaí, Cornetto (o sorvete) e trompete de banda, tenho uma nova existência para ti. Encarnarás como um ser humano, e sua sina será será ser odiada por todos e ecoar um som horrível, o pior que já produzistes até hoje.”

Eu pedi, implorei. Aceitaria ser novamente tromba e até focinho de gambá. Mas foi em vão. “Eu sei de todas as coisas” – respondeu ele - “encarnarás como ser humano. E chamar-te-ão Galvão Bueno”.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Camisa do Corinthians

 

Marcelão devorava um sanduíche sem mesmo olhar para ele, distraído que estava com a pequena tv colocada na prateleira mais alta, atrás do balcão da lanchonete.

- Viu só Carlos! Chom chomp. O coringão meteu 3 a 1 de virada ontem! Chomp chomp. Eu vi tudo lá do Pacaembu. Chomp.

- Comemore mesmo. Não fez mais que a obrigação. Uma vitoriazinha de nada em cima do Sertãozinho em casa… Quer dizer, casa não né… quem sabe um dia vocês viram um time digno de ter um estádio próprio… 

- Ah… falô o sabichão. Grande merda aquele Palestra Itália! Um bando de porcos só podia viver num chiqueiro mesmo!

- Fale o que quiser, a gente tá liderando a Libertadores. Aliás… quantas vocês já ganharam mesmo? Aliás, não fale nada, eu preciso ver a patroa e as meninas na apresentação do coral. Essas coisas de igreja, sabe como é… MERDA!

- Não fala isso que é pecado, Carlão!

- Não tô falando disso, ô gambá. Olha, derrubei mostarda na minha camiseta nova! Ai meu São Marcos! Não posso aparecer assim na igreja, aquelas velhas são umas loucas… outro dia quase expulsaram a Rita do coral porque ela tava com um botão faltando na blusa… MERDA!

- Relaxa, meu amigo, a gente passa rapidinho em casa e eu te empresto uma camisa…

Quando chegaram na casa do amigo, Carlos ouviu a pior notícia possível:

- Xii, Carlão… só tem camisa do timão. As duas únicas camisas que não são do Coringão tão na lavanderia…

- Cê só pode tá zuando né, Marcelo? Eu não posso profanar meu corpo vestindo essa… esse… LIXO!

- É isso ou perder a apresentação… e eu acho que a sua patroa não faz lá o tipo compreensiva…

Carlos ponderou, pensou, refletiu. Dilema: divórcio ou vergonha? Mulher ou honra? Coral ou coro? Família ou mulher e filhas? Suspirou.

- Bom, acho que não tenho escolha….

Foi a sensação mais estranha que já sentira… Era como se todos pudessem vê-lo ali dentro do carro e o olhassem de forma enviesada…

A sensação só piorou ao chegar na igreja. Tentou ao máximo não olhar nos olhos de ninguém e, esgueirando-se, sentou no banco, onde se sentia ainda mais exposto… Um velho conhecido passou por ele e disse, apesar das suas tentativas esconder o rosto…

- Carlos… justo você que…

-Eu sei, eu sei… longa história, não tive escolha.

Começou a apresentação do coral, e os 40 minutos passaram em 4 horas. Carlos já se sentia um alienígena. Quem dera, alienígenas são verdes…

Depois da cantoria, suas filhas e a esposa, que também eram fundamentalisticamente palmeirenses, estavam ruborizadas de vergonha. Antes que a esposa se aproximasse com aquele olhar de desprezo, Carlos tentou desculpar-se, mas foi logo interrompido pela mulher:

-Calado, Carlos. nem uma palavra sobre isso. Já pro carro! E vista uma camisa, pelo amor de Deus.