sábado, 28 de novembro de 2009

Entrevista de emprego

 

Aquele era o dia.

Pela primeira vez na vida do Walmir algo parecia ter dado certo. Após andar por toda a cidade distribuindo currículos, pedindo indicação de amigos, gastando as últimas economias em Lan Houses se inscrevendo em sites de emprego, finalmente conseguira uma entrevista. E não uma entrevista qualquer, era uma empresa bacana, tinha plano de saúde e até vale-refeição. Se tudo desse certo, não precisaria mais viver de bicos. Poderia sair da casa dos pais. Poderia comprar uma TV de 29 polegadas. Poderia até comprar um anel de noivado para a Valdirene. Já imaginava-se um homem empregado, independente, barbeado.

Acordou as cinco da manhã, pois teria de enfrentar muitos quilômetros até o lugar da entrevista. Ao pensar que, se fosse contratado teria de fazer o longo percurso todos os dias, desanimou um pouco, mas logo afastou esse pensamento. Procurava lembrar-se das frases dos livros de auto-ajuda que lia aos montes. “Não desista do seu sonho, Walmir, não desista”; “transforme os obstáculos em trampolins”; “acredite em você”. Comeu um pão com margarina e tomou uma caneca de café com leite, enquanto ainda repetia mentalmente esses mantras. Escovou os dentes duas vezes, só pra garantir.

Aquele era o dia.

Tomou um ônibus. Lotado, muito lotado. Mesmo acostumado com essas coisas, nunca tinha visto tanta gente caber em um espaço tão apertado. Preocupava-se com a roupa, ia ficar todo amarrotada. A bunda de uma cara gordo pressionava o Walmir contra um suporte de ferro a ponto de ele ter dificuldades em respirar (porque esses gordões entram em ônibus lotado, meu Deus? Pensou consigo). Cada centímetro quadrado era disputado ferozmente com braços, cabeças, pernas e nádegas. A essa altura o Sol já nascera forte e fazia calor. Muito calor. Sentia gotas de suor escorrerem lentamente pelas pernas, fazendo cócegas. O gordão agora segurava nas barras de cima, deixando o sovaco suado e pegajoso bem na cara do Walmir. Desistiu de segurar-se e tentou relaxar, só não caiu porque a multidão em volta impedia. Um garoto usando um boné estranho ouvia uma música Black. Ou rap? Ou seria hip-hop? (nem ele mesmo sabia dizer) em volume alto. Foi quando Walmir olhou pra janela do ônibus, os pássaros voando tão livres lá fora, o ar fresco, pessoas andando… Sentiu-se tentado a pular fora por ali mesmo, mas não podia, tinha que resistir. Vai saber quando uma oportunidade dessas apareceria de novo… Provavelmente nunca, não com vale-refeição.

Aquele era o dia.

Quando desceu do ônibus, aliviado e com as pernas dormentes, já passava das dez e meia. Tomou um ar, resolveu comer um hot-dog. O pão com margarina era pouco e estava com fome de novo. Pagou com moedas, deu uma mordia, estava frio. Pensou em reclamar com o dono da barraquinha, afinal, como ele pode vender um “HOT” dog frio? Mas aí reparou que a plaquinha só dizia mesmo “DOG”. Conformou-se e comeu rápido, a entrevista era às onze e, afinal,

Aquele era o dia.

Chegando lá a secretária orientou-o a esperar na sala ao lado. Ansioso, ficou batucando com os dedos na mesa no que parecia horas de espera. Sentiu o estômago revirando. Maldito Hot-Dog, não caíra muito bem. Passou a língua nos dentes e sentiu um pedaço de alguma coisa bem lá no fundo, nos últimos dentes. Já ia colocando o dedo na boca quando percebeu uma câmera na sala. E se estivesse sendo observado? E se fosse um teste? Mas não podia ser entrevistado com sujeira nos dentes! Disfarçou, caminhou até a janela, fingindo observar a “paisagem” e, o mais discretamente possível, colocou o dedo na boca, buscando o maldito pedaço de qualquer coisa lá no fundo. Com muito esforço, conseguiu alcançá-lo, descobrindo ser um resto de salsicha. Maldito Hot-Dog. Não se perdoaria se algo desse errado.

Aquele era o dia.

O alívio, entretanto, durou pouco. O estômago revirava ainda mais, se agitava, doía, se contorcia, se rebelava como um rebelde em busca de independência. Precisava ir ao banheiro. Mas e se demorasse? Mas e se não agüentasse e sujasse as calças? Maldito Hot-Dog. Ficou lutando contra o próprio corpo que parecia odiá-lo até que decidiu que não teria outro jeito: precisava de um banheiro. Mal tinha tomado a decisão, porém, o entrevistador, ou melhor, entrevistadora entrou na sala. Tarde demais, era tudo ou nada.

- Bom dia Sr…hãã… Walmir. Desculpe o atraso, nó já podemos come… hã… Mas que cheiro é esse?

Que dia era aquele!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Rabiscos

Uma noite, dois amantes

Dois amantes, um desejo.

Um desejo, duas bocas.

Duas bocas, um beijo.

…………………………

Nenhum astro se sente seguro

Sem ninguém que diga ou conte,

Todo dia, com medo do escuro,

O Sol se esconde atrás de um monte.

…………………………

Algo eu não consigo perceber,

mistério maior que tramas e intrigas:

quando começa a chover,

Pra onde é que vão as formigas?

…………………………

Na natureza não há justiça ou escolha.

Quando sopra uma ventania ligeira,

A árvore perde uma folha;

a folha, uma árvore inteira.

…………………………

A Solidão me disse: desperta!

Nenhum ser humano convém.

Se eu fosse a uma ilha deserta,

Não levava ninguém!

…………………………

Um dia, tomando cappuccino,

mandei pro inferno esse tal de desejo.

Se eu acreditasse mesmo em destino,

não te dava sorrisos, te dava um beijo.

…………………………

Você foi ao dentista. Pra quê?

Sei que me enganaram, foi isso!

Quem voltou não era você…

Onde estava o seu sorriso?

…………………………

Se a borboleta pousa delicada,

é indiferente à alegria ou à dor.

Se ela permanece ali, parada,

É porque te confundiu com uma flor.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Não és Helena

Tu não és Helena. Não

fariam por ti guerra alguma

nem tapetes vermelhos no chão

nem banhos luxuosos de espuma

colocariam à tua disposição.


Tu não és Joana. Não

encerrariam por ti conflito algum

nem exércitos tu guiarias pela mão

nem mil povos se tornariam um

sob a flor-de-lis, estandarte vão.


Tu não és Isabel. Mesmo

que lhe chamassem princesa.

Não libertastes ninguém de teu mel: fel

pelas próprias algemas ficaste presa

indecisa entre purgatório e céu.


Tu não és Monalisa. Jamais

fariam em ti exposições de arte

nem teu sorriso inspiraria festivais

e os críticos não andariam por toda a parte

nem orgulho sentiriam teus pais.


Serias, acaso, Capitu? Cigana?

Oblíqua, dissimulada, mentirosa?

Confiariam em ti e em tua trama

Havendo sob a face doce e carinhosa

Olhos de ressaca, boca que engana?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Simão, o vacilão

 

Ninguém sabia explicar porquê. Uns diziam que era a confluência dos astros, outros que era defeito genético, outros ainda diziam que era uma maldição. As teorias variavam bastante, mas nenhuma conseguia realmente explicar porque o Simão nascera deste jeito…peculiar.

Seu primeiro ato de maldade foi aos três segundos de vida. Ao nascer, fingiu-se de morto e não respondeu às palmadinhas do médico, deixando todos em pânico, pra dali cinco minutos começar a chorar (porque ainda não aprendera a rir das suas primeiras vítimas). Ainda bebê, fazia greve de fome e se recusava a tornar as coisas um pouquinho menos complicadas pra sua mãe.

Se as crianças já costumam ser terríveis, imagina só o Simão. Enquanto os coleguinhas se divertiam fazendo travessuras como queimar formigas com lupas, ele usava uma mistura especial de nitrato de amônio que não matava, mas deixava as coitadinhas agonizando em dor por semanas. Grudava chiclete no cabelo das meninas, desenhava bigodinhos e chifrinhos nas figurinhas dos meninos. Uma vez ganhou um hamster de um tio, com aquela rodinha e tudo, mas ele preferia colocá-lo em uma chapa quente e vê-lo dançar forçado a Macarena.

Quando adulto, continuou seu repertório de peripécias. Roubava o jornal do vizinho, mas deixava apenas o caderno Zen, Equilíbrio, Viagens e esses que ninguém lê. Roubava os dízimos da igreja. Dava moedas de Cruzados Novos para cegos mendigos. Saltitava ao lado de pessoas em cadeiras de rodas. Comia chocolate em frente ao Spa. Ia no cinema só pra contar os finais dos filmes. Ouvia tecnobrega em volume altíssimo mesmo odiando as músicas: o prazer de irritar os vizinhos superava tudo.

Quando algum desinformado o convidava pra uma festa de aniversário, ele só levava presentes sacanas: cuecas, lenços, box de DVDs do R.R. Soares, capas pra computador, Cds do Fagner.

Uma vez até arrumou uma namorada pela internet, se fez de bonzinho e resolveu casar com ela. Tudo isso só pelo prazer de abandoná-la no altar, gargalhando e dizendo que era uma baranga.

Era mesmo um chato, um pé no saco, um vacilão. E ele nem ligava.

Um dia, subiu ao apartamento, colocou a comida do peixe (que não comia a uma semana) bem em frente ao aquário. Achou graça de saber que os olhos de um peixe podem se esbugalhar ainda mais. Ligou pra pizzaria e pediu cinco portuguesas e nove margueritas para entregar na casa de uma mulher surda-muda que morava em frente e não conseguiria explicar o não-pedido.

Sentou no sofá, ligou a TV a cabo (o cabo era do vizinho), mas algo devia estar errado com a gambiarra: só pegava a TV Senado. Com preguiça de levantar, deixou-se estar ali por uns vinte minutos. Descobriu que não era o único vacilão do mundo. Tinha gente que roubava dinheiro de pobre, fazia leis em benefício próprio e ainda desmentia tudo. Sentiu-se um amador. Ficou pensativo por um momento, pegou de lado a lista telefônica e copiou um número.

Era o número de um psicólogo.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O que pensam as mulheres

- Você tá brincando, né?

- Juro que não, juro!

-Mas Pereira, onde você arrumou esse troço?

- Então Manolo, lembra quando fui visitar o laboratório do tio Paulo? Aquele que fez até faculdade? Pois é, eu confesso que achei bonito, pensei que era um fone de ouvido e coloquei na orelha. Acabei indo embora e esquecendo de devolver…Então, quando descobri seus “poderes mágicos” decidi ficar com ele. Você sabe como o tio Paulo é meio biruta, né?

- Mas não pode ser possível…

- Ainda duvida? Coloca na orelha e testa. Assim.

Quando Manolo colocou o pequeno aparelho bege na orelha direita, sua mulher, Jane, apareceu na janela:

- Manolooooo! Com que você está falando? Ah, é você, Pereira, como vai?

No instante seguinte, surgiu uma voz metálica saindo do aparelhinho. Ela dizia:

[Você já tá jogando conversa fora com esse vagabundo do seu primo, né Manolo…]

Milagre. O aparelho funcionava mesmo. justo como o Pereira disse, ele traduzia tudo que as mulheres pensavam, mas não falavam, ou seja, tudo.

- Incrível, funciona! Cara, porque você está me dando isso, você pode ficar rico com ele!

- Não se iluda camarada, “isso” acabou com o meu casamento, quero distância deste artefato do demônio. Se quiser ficar com ele, tudo bem, mas é por sua conta…

Aquelas recomendações nem chegaram ao cérebro do Manolo, que estava extasiado com suas novas habilidades. Era a solução de tudo, poderia finalmente entender as mulheres e continuar heterossexual. Quantos homens não desejariam cortar caminho através das complicações femininas direto para o sexo?

O tempo foi passando e ele conseguia compreender tudo que lhe era dito pela mulher. A utopia realizada.

- Manolo, devo usar o sapato verde ou o vermelho?

E o aparelho traduzia:

[O vermelho, o vermelho! É tão óbvio, eu já fiz minha escolha, agora é só confirmar, estúpido!]

- Vermelho.

10 pontos pro Manolo.

- Você acha que eu dei uma engordadinha? Seja sincero, hein!?

[Se disser que eu engordei, enfio essa aliança na sua garganta e te sufoco até a morte!]

- Imagina, amorzinho, você nunca esteve em melhor forma. (As expressões faciais convincentes eram mérito do Manolo, não do aparelho).

Mais 50 pontos.

- Benhê, coloca na novela?

[Olha aqui, seu miserável, tô numa TPM ferrada, se não colocar na novela eu ponho fogo na sua camisa do Corinthians autografada pelo Marcelinho Carioca]

- Claro, minha linda, ainda mais porque no capítulo de hoje a Marcinha revela que é a verdadeira mãe dos trigêmeos siameses…

1350 pontos.

E assim, Manolo seguia todo contente no seu relacionamento perfeito. Depois de um mês, ele já estava com uns 735.000 pontos (o que lhe dava o direito até de recusar almoço com a sogra).

Até que Jane disse aquelas três palavras que todo homem teme ouvir:

-Olha, precisamos conversar.

[Senta aí e escuta de boca fechada, Zé mané!]

Ele sentou-se, fazendo a melhor cara de docinho de coco que conseguia.

- Olha, acho que não podemos mais ficar juntos… Não, não é você, sou eu. Você é ótimo, atencioso, carinhoso, perfeito. Perfeito até de mais. Você merece alguém melhor, a culpa é minha, eu só preciso de espaço, sabe? Mudanças, novos horizontes, ficar um tempo sozinha…

[Trouxão, você fica aí dando uma de certinho e nem percebeu que eu tô saindo com outro. Isso mesmo, você é um corno! Agora dá licença que eu tenho coisa melhor esperando por mim!]

A cara de docinho se transformou em cara de cocô. Saiu cabisbaixo, tirou o aparelho do ouvido, jogou-o pela janela e ligou para o Pereira:

- Alô?

- É o Manolo. Tá afim de tomar umas e pegar umas gostosas?

- Demorô.