Aquele era o dia.
Pela primeira vez na vida do Walmir algo parecia ter dado certo. Após andar por toda a cidade distribuindo currículos, pedindo indicação de amigos, gastando as últimas economias em Lan Houses se inscrevendo em sites de emprego, finalmente conseguira uma entrevista. E não uma entrevista qualquer, era uma empresa bacana, tinha plano de saúde e até vale-refeição. Se tudo desse certo, não precisaria mais viver de bicos. Poderia sair da casa dos pais. Poderia comprar uma TV de 29 polegadas. Poderia até comprar um anel de noivado para a Valdirene. Já imaginava-se um homem empregado, independente, barbeado.
Acordou as cinco da manhã, pois teria de enfrentar muitos quilômetros até o lugar da entrevista. Ao pensar que, se fosse contratado teria de fazer o longo percurso todos os dias, desanimou um pouco, mas logo afastou esse pensamento. Procurava lembrar-se das frases dos livros de auto-ajuda que lia aos montes. “Não desista do seu sonho, Walmir, não desista”; “transforme os obstáculos em trampolins”; “acredite em você”. Comeu um pão com margarina e tomou uma caneca de café com leite, enquanto ainda repetia mentalmente esses mantras. Escovou os dentes duas vezes, só pra garantir.
Aquele era o dia.
Tomou um ônibus. Lotado, muito lotado. Mesmo acostumado com essas coisas, nunca tinha visto tanta gente caber em um espaço tão apertado. Preocupava-se com a roupa, ia ficar todo amarrotada. A bunda de uma cara gordo pressionava o Walmir contra um suporte de ferro a ponto de ele ter dificuldades em respirar (porque esses gordões entram em ônibus lotado, meu Deus? Pensou consigo). Cada centímetro quadrado era disputado ferozmente com braços, cabeças, pernas e nádegas. A essa altura o Sol já nascera forte e fazia calor. Muito calor. Sentia gotas de suor escorrerem lentamente pelas pernas, fazendo cócegas. O gordão agora segurava nas barras de cima, deixando o sovaco suado e pegajoso bem na cara do Walmir. Desistiu de segurar-se e tentou relaxar, só não caiu porque a multidão em volta impedia. Um garoto usando um boné estranho ouvia uma música Black. Ou rap? Ou seria hip-hop? (nem ele mesmo sabia dizer) em volume alto. Foi quando Walmir olhou pra janela do ônibus, os pássaros voando tão livres lá fora, o ar fresco, pessoas andando… Sentiu-se tentado a pular fora por ali mesmo, mas não podia, tinha que resistir. Vai saber quando uma oportunidade dessas apareceria de novo… Provavelmente nunca, não com vale-refeição.
Aquele era o dia.
Quando desceu do ônibus, aliviado e com as pernas dormentes, já passava das dez e meia. Tomou um ar, resolveu comer um hot-dog. O pão com margarina era pouco e estava com fome de novo. Pagou com moedas, deu uma mordia, estava frio. Pensou em reclamar com o dono da barraquinha, afinal, como ele pode vender um “HOT” dog frio? Mas aí reparou que a plaquinha só dizia mesmo “DOG”. Conformou-se e comeu rápido, a entrevista era às onze e, afinal,
Aquele era o dia.
Chegando lá a secretária orientou-o a esperar na sala ao lado. Ansioso, ficou batucando com os dedos na mesa no que parecia horas de espera. Sentiu o estômago revirando. Maldito Hot-Dog, não caíra muito bem. Passou a língua nos dentes e sentiu um pedaço de alguma coisa bem lá no fundo, nos últimos dentes. Já ia colocando o dedo na boca quando percebeu uma câmera na sala. E se estivesse sendo observado? E se fosse um teste? Mas não podia ser entrevistado com sujeira nos dentes! Disfarçou, caminhou até a janela, fingindo observar a “paisagem” e, o mais discretamente possível, colocou o dedo na boca, buscando o maldito pedaço de qualquer coisa lá no fundo. Com muito esforço, conseguiu alcançá-lo, descobrindo ser um resto de salsicha. Maldito Hot-Dog. Não se perdoaria se algo desse errado.
Aquele era o dia.
O alívio, entretanto, durou pouco. O estômago revirava ainda mais, se agitava, doía, se contorcia, se rebelava como um rebelde em busca de independência. Precisava ir ao banheiro. Mas e se demorasse? Mas e se não agüentasse e sujasse as calças? Maldito Hot-Dog. Ficou lutando contra o próprio corpo que parecia odiá-lo até que decidiu que não teria outro jeito: precisava de um banheiro. Mal tinha tomado a decisão, porém, o entrevistador, ou melhor, entrevistadora entrou na sala. Tarde demais, era tudo ou nada.
- Bom dia Sr…hãã… Walmir. Desculpe o atraso, nó já podemos come… hã… Mas que cheiro é esse?
Que dia era aquele!